quinta-feira, 24 de abril de 2008

NO PÉ DO PINGÜIM - O gelado continente da solidão...

Nem Queiroz



Hoje não fui trabalhar e acabei trabalhando mais que o de costume. São nessas horas que provamos um pouco do outro lado, o gosto um tanto quanto amargo da vida da mulher. Esse lado de que tanto ouvimos falar e só ouvimos. Há uma paz no lar que a gente desconhece. Está tudo lá, repousado, disposto e exposto e a gente não se dá conta, uma percepção indisponível que não atentamos e mais as contas no pé do pingüim. A vontade é do descanso, o sol se aproxima da casa, a fome se aproxima de nós e de repente já é hora do almoço, as crianças estão voltando do colégio, o vizinho gritando por seu filho do outro lado, o barulho de automóvel na rua, o gás, o lixo, a britadeira e os gritinhos das crianças bem na porta da nossa casa, uma canção se precipita e logo minhas lembranças também, o dia passa lento e preguiçoso, não há aquela correria de todos os dias, você repara até no vento que balança as copas das árvores as quais você nunca deu valor e passa o avião, os passarinhos, meninos jogando futebol, e sem darmos conta, estamos em paz. É isso, estamos em transe, um transe doméstico que nos invade silenciosamente, mas isso só por alguns minutos, é quase um gozo existencial porque logo após vem a realidade dos fatos, da vida prática e num grito, manhÊÊÊÊ! Pedimos arrego secretamente. E tudo volta, assim como se foi. A felicidade não se esvai por completo, ainda estamos no gozo, e só aos poucos na verdade, vamos voltando e diluindo como tudo ao redor sem muito perceber. Então voltamos ao mundo real, lavando os pratos, olhando os meninos, as crianças, os muros e as paredes cheias de silêncio e sombras e algum jardim à sua vista num incêndio provisório que seus olhos constrói, já fomos felizes neste dia, outros momentos irão de chegar, de voltar, de se fazer e refazer, são as compensações de cada dia, com suas dificuldades diárias e felicidades embutidas que no final do dia, se não conseguimos a felicidade plena, pelo menos à duras penas e pela metade, fomos felizes de algum jeito e a soma de tudo isso se configura um saldo que não prestamos conta nem atenção, porque apenas vivemos pretendendo sorrir mais que chorar, compensar mais que subtrair e assim vamos entre flores e barrancos viver a nossa sina, se possível transcender a nossa sina, uma missão cotidiana que o tempo escreve interruptamente dia após dia, minuto após minuto, sem pressa e pela eternidade que não temos. Estamos dentro do dia e a água escorre pela pia que deixei aberta quando fui atender o telefone. Era você com sua voz meiga e cansada, invejada da minha folga. Sorrimos por um breve bocado e nos despedimos mais uma vez, logo me lembrei da torneira e corri de volta para a cozinha, putz! Agora terei que limpar a cozinha inteira, enxugar para ser mais preciso, mas isso não é nada, estou feliz e em paz, já são quatro horas da tarde e o sol não tarda a descansar. ligo a tv, desligo a tv. Ponho uma música para relaxar e resolvo sair, mas antes um bom banho para me repor. Saio do banho com a toalha em volta de meu corpo úmido, de repente um tesão bate do nada, começo a ter imaginações eróticas, meus olhos se apequenam e o tato logo é fato e o fato é que estou sozinho agora “nú” quarto de frente para um espelho na penumbra e o meu esforço para chegar a um orgasmo rápido é interrompido pelos gritos dos meninos que ardem lá fora com a sua juventude à pleno vapor, foi só uma desconcentração momentânea, logo volto para o meu exercício solitário, imagens povoam meus pensamentos, agora os gritos não me incomodam mais, estou em transe e em questão de minutos devo voltar a um novo banho, o desejo foi executado, um alívio me relaxa ainda mais, respiro em frente ao espelho, passo a escova no cabelo e apago a luz.
Começo a me arrumar; não devo te esperar, você só chega mais tarde e talvez nem esteja disposta. Vou-me então... para onde, eu não sei.