sexta-feira, 17 de julho de 2009

VIDA DE CÃO e o CÃO DE GUARDA !


Foi-se o tempo em que animais domésticos, pássaros silvestres, insetos incomuns, minhocas, faziam de uma hora ou outra, sublime o instante da magia e do encontro e quando este momento costuma a se repetir, mesmo que por acaso, adotamos para nós como mais novo vizinho e em casos mais particular, como nosso amigo ( muito normal com cães e gatos), essas doces e adoráveis criaturinhas de Deus. Mas desta vez tudo mudou.
Todos os dias ele me olha, prostrado quase em frente á minha casa, na rua por onde passo e moro. Ele me olha de soslaio, vazio, fingindo que me ignora, sem emitir um som sequer, e de repente some, vai embora, ressabiado, me olhando de lado, pelos cantos dos olhos de ressaca, examinando tudo à volta, como se fosse um E.T. Noutro dia, num frio danado e ele lá no seu posto, de orelhas murchas porém atentas feito um morcego. Mal protegido da noite e de sua friagem, com os olhos cerrados e vermelhos; teve uma vez que arrisquei um “bom dia/boa noite” e nada, parecia um boneco, um bicho do mato. Ele não se aproxima de ninguém, não confia em ninguém, apenas observa assim como eu, não conversa, não sorri, apenas existe, vegeta, igual a um cacto ou um cogumelo, é triste, sonolento e sagaz, dono de uma animosidade que não dá conta. Magro, franzino, sisudo, escravo de tudo, da vida, da dívida, do que se meteu. Todos os dias ali, de prontidão, feito um cão de guarda, apodrecendo com o tempo precoce dos que não sabem usá-lo melhor. Sempre olhando ao redor, as sombras, os becos, além. Olhando nossas vidas, esquecido de si, atento a tudo, a nós, ou ignorando-nos de fato, não sei, mas firme no cumprimento do dever, da dívida, da sua coragem e medo. Uma vez tive a impressão de vê-lo assustado, reclamando do frio e da fome, quase lhe estendi a mão, mas houve receio, desconfiança, descaso mórbido, desesperança, desespero silencioso do medo do outro. Ele não faz “mal” a ninguém, pelo menos diretamente ou por enquanto, me atrevo a dizer.
Quase 24hs ininterruptas de prontidão e contudo permanece ali valente, integralmente concentrado com suas correntes e algemas invisíveis, sujo e inalcançável, sozinho.
Poderia ser um gato imundo sem casa, um cão sem dono na sua vida de cão, um macaco que fosse, mas não, nada disso. Era apenas um ser, um Zé, um ser humano incrivelmente igual a qualquer um, um menino em outra época, um desalmado nesta, um homem torto, um vapor, barato imagino, sem roupa nem sapatos, quase um indigente, olhando sem aprender, aprendendo mais que todo mundo sobre a dor e a solidão, olhando para gente como se fosse alguém que ele (não) sabe que não é.
Não há respeito nem elos ou princípios, que possa possibilitar algum indício de civilidade ou caminho de volta, ele apenas apareceu ali, está ali, estático, no nada, do nada, como se germinasse do chão de asfalto sem vida, sem pão ou comida, sem destino nem lamentação. Da minha janela o vejo em paranóia constante de uma comportada disciplina ausente de sentido, incomodando a despistar.
Em frente a minha casa agora mora, se hospeda, trabalha , vigia, vive e transpira um traficante! Sutil, reconheço, mas um traficante. Ninguém fala com ele, ele não fala com ninguém, apenas espia, observa e se comunica com alguém distante pelo rádio enorme que carrega à tira colo. Ninguém lhe oferece ajuda ou lhe estende a mão, que talvez ele não queira nem faça questão. Também pudera, o medo e o preconceito são juntos fortalezas intransponíveis, noutros níveis de aceitação.

Os moradores não o temem mais, saindo pela manhã bem cedo, na primeira hora do dia, chuvoso ou calorento, e ele lá aceso, sempre de prontidão. Todos voltando bem tarde do trabalho e ele ainda lá, sempre aceso de prontidão, sem cartão para bater...

É mesmo como um animal talvez, ninguém sabe de onde veio, porque vive, pelo que sonha, se sonha, ninguém sabe se é mesmo bravo, brabo ou manso, se pode, se quer, ou não quer ser ou ter amigos na sua puta solidão de bandido, encalacrada de domínio sujo e escravidão inevitável agora.

Daqui a um tempo provavelmente, poderemos ter notícias do seu sumiço repentino ou simplesmente não quereremos saber e ignorá-lo na poeira da vida, na decadência do mundo ou então odiá-lo como sabemos fazer, odiá-lo de vez por sua crueldade vinda á tona, expostas numa página de jornal ou nas palavras das lendas e boatos ditos e nascidos á todo lado e instante, será a coisa mais fácil do mundo.
Enquanto isso, ficamos ao léu sem saber como poder ajudar, sem ser ajudado; e o Estado ausente como sempre, poderá em algum dia fútil, jamais saber da falta que nos faz, prestando contas de sua incapaz sensibilidade para com seus cidadãos, através de um frio boletim de ocorrência ou se fazer fantasmagoricamente presente, indiferente, pelas manchetes dos jornais.

Só não poderemos jamais saber se é tarde demais para nós...ou para ele.