quinta-feira, 24 de abril de 2008

NO PÉ DO PINGÜIM - O gelado continente da solidão...

Nem Queiroz



Hoje não fui trabalhar e acabei trabalhando mais que o de costume. São nessas horas que provamos um pouco do outro lado, o gosto um tanto quanto amargo da vida da mulher. Esse lado de que tanto ouvimos falar e só ouvimos. Há uma paz no lar que a gente desconhece. Está tudo lá, repousado, disposto e exposto e a gente não se dá conta, uma percepção indisponível que não atentamos e mais as contas no pé do pingüim. A vontade é do descanso, o sol se aproxima da casa, a fome se aproxima de nós e de repente já é hora do almoço, as crianças estão voltando do colégio, o vizinho gritando por seu filho do outro lado, o barulho de automóvel na rua, o gás, o lixo, a britadeira e os gritinhos das crianças bem na porta da nossa casa, uma canção se precipita e logo minhas lembranças também, o dia passa lento e preguiçoso, não há aquela correria de todos os dias, você repara até no vento que balança as copas das árvores as quais você nunca deu valor e passa o avião, os passarinhos, meninos jogando futebol, e sem darmos conta, estamos em paz. É isso, estamos em transe, um transe doméstico que nos invade silenciosamente, mas isso só por alguns minutos, é quase um gozo existencial porque logo após vem a realidade dos fatos, da vida prática e num grito, manhÊÊÊÊ! Pedimos arrego secretamente. E tudo volta, assim como se foi. A felicidade não se esvai por completo, ainda estamos no gozo, e só aos poucos na verdade, vamos voltando e diluindo como tudo ao redor sem muito perceber. Então voltamos ao mundo real, lavando os pratos, olhando os meninos, as crianças, os muros e as paredes cheias de silêncio e sombras e algum jardim à sua vista num incêndio provisório que seus olhos constrói, já fomos felizes neste dia, outros momentos irão de chegar, de voltar, de se fazer e refazer, são as compensações de cada dia, com suas dificuldades diárias e felicidades embutidas que no final do dia, se não conseguimos a felicidade plena, pelo menos à duras penas e pela metade, fomos felizes de algum jeito e a soma de tudo isso se configura um saldo que não prestamos conta nem atenção, porque apenas vivemos pretendendo sorrir mais que chorar, compensar mais que subtrair e assim vamos entre flores e barrancos viver a nossa sina, se possível transcender a nossa sina, uma missão cotidiana que o tempo escreve interruptamente dia após dia, minuto após minuto, sem pressa e pela eternidade que não temos. Estamos dentro do dia e a água escorre pela pia que deixei aberta quando fui atender o telefone. Era você com sua voz meiga e cansada, invejada da minha folga. Sorrimos por um breve bocado e nos despedimos mais uma vez, logo me lembrei da torneira e corri de volta para a cozinha, putz! Agora terei que limpar a cozinha inteira, enxugar para ser mais preciso, mas isso não é nada, estou feliz e em paz, já são quatro horas da tarde e o sol não tarda a descansar. ligo a tv, desligo a tv. Ponho uma música para relaxar e resolvo sair, mas antes um bom banho para me repor. Saio do banho com a toalha em volta de meu corpo úmido, de repente um tesão bate do nada, começo a ter imaginações eróticas, meus olhos se apequenam e o tato logo é fato e o fato é que estou sozinho agora “nú” quarto de frente para um espelho na penumbra e o meu esforço para chegar a um orgasmo rápido é interrompido pelos gritos dos meninos que ardem lá fora com a sua juventude à pleno vapor, foi só uma desconcentração momentânea, logo volto para o meu exercício solitário, imagens povoam meus pensamentos, agora os gritos não me incomodam mais, estou em transe e em questão de minutos devo voltar a um novo banho, o desejo foi executado, um alívio me relaxa ainda mais, respiro em frente ao espelho, passo a escova no cabelo e apago a luz.
Começo a me arrumar; não devo te esperar, você só chega mais tarde e talvez nem esteja disposta. Vou-me então... para onde, eu não sei.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

CRÍTICA DO MEU TEMPO

Nem Queiroz


Outra coisa que eu não suporto são essas bandinhas com pose de rock’n’roll. Vocês podem enganar essa juventude boboca que não liga para porra nenhuma, que não busca cultura para ter o mínimo de discernimento, para diferenciar o que é bom do que não presta, aí curtem qualquer coisa e vão fazer qualquer coisa e o mal gosto se instala geral e nada mais tem valor, nem quem toca nem quem escuta, como podemos melhorar?” Não há como! Isso é letra que se apresente, meu filho? Vai aprender a escrever, vai, vai aproveitar aprende a tocar também, senta pelo menos uma vez essa sua bundinha que mamãe passou talquinho e vai escutar algum disquinhos básicos para você ter algum entendimento do que você pensa que está fazendo. Tenha santa paciência, me perdoem os mais ligados, mas é como literatura, quando você descobre a boa literatura, não consegue ler mais qualquer porcaria, vocês conhecem Machado de Assis, é, aquele velho chato que a gente era obrigado a ler na escola, vocês foram à escola?! E Clarice Lispector, o quê?! Nunca ouviram falar? Qual foi o último livro que vocês leram, então o que é que vocês conhecem, o que que vocês estão dizendo com essa letras imundas e sem sentidos, bonitinha na métrica mas um desastre no conteúdo, e o pior é que não há auto-crítica, mas como haverá?! Que bobagem de se perguntar! Para se ter idéia, sabe esses best sellers que vendem milhões, pois é, até estes viram água quando a gente descobre a literatura essencial, ficam pobres, porque a gente descobre o que é bom de verdade. A mesma coisa é com a música. Sabe o que acontece? Vocês se envolvem com a música e se desenvolvem, mas na música, que no caso, o rock, que não é nem difícil de aprender, também requer talento. Não é só porque você trabalha com três nota que a música não vai ser boa,para aquele estilo, entende?! Por exemplo, qualquer disco dos Ramones, do Sex Pistols, é melhor do que toda a programação que vocês escutam nessas rádios vagabunda que restaram depois da Flu FM, e que se intitulam rock’n’roll. Não estão com nada! Aí vocês até tocam bem e tal e coisa, mas não ligam para a literatura da coisa, porra, vocês não estão cantando em inglês, caralho, e mesmo se cantassem, é preciso saber o que se canta, o que se fala, senão fica um monte de cordeirinhos pulando com o rebanho que a rádio comandam, não se deixem levar, o rock é tudo menos isso, cada baboseira que se ouve e que se escreve, dá até nojo, e o pior é que se grava e se vende, mas quem é que compra essa porcaria!? Cantam até de olhos fechados, seus bregas enrustidos, suas pragas, tinham que fechar eram os ouvidos, os abri-los mais ainda, porque com o que se tem tá foda de aturar, não existe o senso crítico, não há direção, nem o punk era assim, também pudera, não devem mesmo se interessar por nada, além do somzinho de vocês, como vão saber?! Como podem saber?! Vocês não lêem, LEIAM, meus filhos, LEIAM!!! Qualquer merda, mas leiam, leiam jornais, leiam, bula de remédio, comecem, apenas comecem, vão fundo, vocês vão até gostar, eu garanto. Se bobear, não sabem nem sequer escrever direito, as letras que vocês fazem ( não escrevem ), são totalmente desqualificadas, irritantes, covardes, sem conteúdo, miúdas, lembrei! E os clássicos? Já leram algum? Vocês sabem quem são Dostóievisk, Oscar Wilde, Shakespears, vocês já devem Ter ouvido falar, espero, e os beatniks? Bukowski, indispensável, Jack Kerouac, que nada, no máximo Paulo Coelho e se muito, como se atrevem a escrever canções, vocês ouvem Bob Dylan, vão ao cinema, discutem as letras das grandes bandas? É preciso se inteirar, só isso, os nossos, falo da poesia, da profundidade do que se trata, Cazuza, Renato Russo, Chico Zumbi, Buarque, Caetano, os anos 80, mesmo que vocês não curtam tanto, mas admitam, foi a melhor safra, a Plebe, Violeta de Outono, o Ira, Titãs, Paralamas. Antes a gente comprava os discos e comentava, hoje não vejo mais isso, também pudera, não há mais nada, e não falo só da gente daqui de baixo não, falo principalmente desses conjuntos, (conjunto, não banda), que tocam 50 vezes por dia até entrar por osmose em nossas mentes, sufocar, sufocar, essas merdas de rádios, cheias de concessões e hipocrisia, que recebem para tocar essa ou aquela música, não é possível que não seja assim, por isso a falsa impressão de ser fácil, extremamente fácil, Arghhh!...

O DISCO MAGISTRAL DE MILES DAVIS

Nem Queiroz


Gosto de pensar que aquele disco que consegui do Miles Davis, foi a mais sensacional oferta que alguém poderia ter conseguido. Por isso, não ouso voltar àquela loja; tenho receio de encontrar outro exemplar pelo mesmo módico preço fixado e pouco demais para um disco tão histórico e fundamental. Gosto de pensar que ele era o único e que eu tive a grande sorte de encontrá-lo primeiro e antes que todo mundo. O disco em questão: Kind of Blue. Um marco! Desde a primeira vez que ouvi, desde a primeiríssima audição, nunca mais deixei de ouvi-lo em minha alma, em meu âmago, estou apaixonado, ele ficou tatuado em minha mente, fixo em minha lembrança. Em todo lugar que vou, carrego-o comigo, tocando incessante no cd player do meu íntimo, nos meus tímpanos secretos, na minha vitrola, imaginária vitrola que toca e serena não pára nunca. Em todo lugar que vou, aquela música me alcança e dança comigo, sua concepção, sua ação, ela me persegue, não sai da minha história nem da minha memória, muito menos do meu coração. Aquela mágica melodia, única, intuitiva, chuva fina da minha existência ínfima, pecaminosa, luz de um céu que ilumina a minha inspiração com seu clima intimista, com sua própria criação e seu idioma. Foi o único disco, e olha que já ouvi milhares, que nunca deixei de ouvir, e olha que ouvi pouquíssimas vezes, 3 ou 4 talvez. Sabe aquela coisa de que a primeira vez a gente nunca esquece?! Pois comigo aconteceu! E então o levo para onde quer que eu vá ou esteja e gosto tanto, tanto, tanto que sem ele não mais me vejo, ele que agora é o meu sonho ou a trilha de um sonho qualquer mas que é meu, torna irradiado o futuro estrelado que agora eu sei de volta que existe de verdade, pelo menos dentro de mim. Gosto tanto dele que me sinto lisonjeado por ele e por tê-lo, sim, pois ele, o disco magistral de Miles Davis, que ainda tem como parceiros Bill Evans e John Contrane entre outros, (veja só! ) é um tributo à alma humana. A gente se sente tocado por ele, nos dois sentidos, instigado por aquele momento tão sublime, silencioso e sedutor, singular e íntimo de quando ele toca, que nos sentimos divinamente acariciado. Kind of Blue é o sopro do sax e do filtro do ar que respiramos, do sonho e do delírio inalcansável e inexistente antes dele! Um relaxante que protagoniza e agoniza a forma e o conteúdo dos que têm na alma o infinito. Ninguém será o mesmo depois de Kind of Blue...


OUVINDO O FABULOSO DISCO DE MILES DAVIS

Nem Queiroz


Recluso tal qual Ernest Hermigway, ouvindo o fabuloso disco de Miles Davis, apronto o café que me apronta para este outro novo dia. Sozinho, ainda, nessa hora mansa da manhã, sinto estranhas sensações. Sinto-me como um pescador solitário em sua balsa, perto duma ilha abandonada, quase perdida e estranhamente minha, estranhamente de ninguém. Uma paz também estranha e pertinente preenche o ambiente misturada e divagada com o som do sax de Miles e da fumaça do cigarro que eu não fumo, mas invento. Serei eu um escritor sem sossego e sem descoberta? Quem precisa de sossego?! Os mortos.
Minhas descobertas eu mesmo faço. Hoje meu pai veio me visitar, era muito cedo ainda, de modo que a neblina dessa época do ano, não havia ainda se dissipado por completo. O sol parecia preguiçoso e seus raios pintavam a paisagem com belos e suaves traços de luzes serenas, por entre a vegetação do quintal de nossa casa...
Decido fazer um poema, que me consome um bom tempo, da música e do café. Escrevo sobre cigarros e prazeres furtivos. Não sei porque essa fixação em cigarros, agora! logo eu que não fumo, que detesto o gosto de nicotina que ele deixa em nosso hálito, prefiro uma bebidinha, mas não por essa hora...
Minha esposa, deitada na cama, chama por mim. Levo-lhe um copo de leite toda noite quando a gente deita, mas esta manhã ela também necessita de um pouco mais, ela o toma junto com um comprimido para dor de cabeça, que a atormenta faz três dias. Ela me agradece com um olhar, eu retribuo com um beijo em sua testa perfeita e suada. Ela volta a dormir, ela precisa descansar. O Amor é algo assim, um bichinho de pelúcia, jogado num canto, que a gente acalanta, passa a mão suavemente e sente a carícia que nós mesmos produzimos, depois vem a vida e passa por cima de tudo.
A filhota chega dos estudos, mais cedo que de costume, mais acesa que o habitual. Será que pegou gosto pelas letras? Que nada! Ouço sua mãe lhe dizer não a um pedido e ela se aborrece como é de costume, como é seu habitual. Ela se emudece, isolada no seu quarto, com seu ursinho feio e de pelúcia, curtindo a sua novíssima solidão. Daqui a pouco ela ligará a tv, como num último ato de sua melancolia precoce para se esquecer de tudo, entorpecendo a mente de vazio e as horas de desperdícios em vão, logo, logo, tudo volta ao normal, outros pedidos, outros desejos, outros sins, outros nãos...
Enquanto isso Miles Davis traduz a cena, trás o sol e o céu para dentro de mim e eu dentro da casa abro as asas e as janelas para o sol entrar. Há um silêncio que se estende e que não é normal por aqui, aproveito ao máximo enquanto a vida dorme, logo ela que nunca dorme, deve ser a música mágica e magistral de Miles. Releio o poema, gosto dele, mas mesmo assim, me desfaço de tudo, termino o café e o arremesso fora. O dia já começou faz tempo.

PESSOAS QUE NÃO ACREDITAM NO AMOR !


Pessoas que não acreditam no Amor, parecem mais felizes que as que acreditam, talvez por aceitarem, pela metade, tudo aquilo que poderiam ter por inteiro, porém com todos os riscos que felicidade assim exige. Pessoas que não acreditam no Amor são mais objetivas, menos problemáticas, mais técnicas, quase matemáticas, lidam com a razão, emoções não são o seu forte, só se for aquelas bem passageiras, que não deixam seqüelas e nem as deixam vulneráveis ao companheiro(a) e/ou aos acontecimentos, pois quando são pegos, a revolta pela fraqueza será mais profícua que qualquer possibilidade de estabilidade douradora, já que isso irá lembrá-los e por um bom tempo, de como são iguais a todo mundo e que como todo mundo, eles também são suscetíveis ao sentimento em questão, por isso aprenderão depressa de como não se comportar diante do Amor! A vida é mais importante, interessante, o físico é mais eloqüente, os dias são para serem aproveitados, nos mínimos instantes que lhes possibilitem progresso pessoal, não há tempo a perder. Nos dias de hoje, a corrida pelo ouro é imprescindível, e se todos pensam assim, não será vergonha alguma, agir da mesma forma; o outro mesmo sendo a vítima circunstancial, que seja, irá entender perfeitamente, pois faria o mesmo, se fosse ele o algoz, e pensaria da mesma forma. É como se fosse um negócio, os lucros é o que importa, e se não há, é incoerente a relação. O casal precisa se estabilizar, evoluir, como uma empresa, do contrário é atraso de vida, sinto muito e tchau! Na verdade, nunca houve Amor, esse sentimento que só sabe atrapalhar a objetividade dos que não têm tempo para desperdiçar.
As pessoas que não acreditam no Amor, prezam por uma liberdade incondicional, imprescindível nos dias de hoje, sentem-se evoluídas e isso as fazem se sentir bem, pessoas que não acreditam no Amor têm a mente aberta, centrada e concentrada na estrada e para tudo aquilo que mais querem, por isso são frias, às vezes calculistas, mas sempre em prol a seus objetivos, sem parada para pensar, se distrair com qualquer outro assunto ou coisa, e assim fortalecem seus músculos e suas aspirações, ultrapassam os obstáculos com um empenho e performance de um atleta, não têm piedade para com quem quer que seja, amigo ou amante, parente ou amor,( rsrsrs ). Se for preciso descartá-los, farão com menos prejuízo emocional, pois aprenderam cedo que não se pode ser molengas, não haverá quase sofrimento, não de sua parte, encaram de fato como quase um negócio, cada um dá o que tem, quando quiser e como der, e quando acabar, acabou! A questão pessoal/sentimental é posta sumariamente de lado, não há muito o que considerar, para que estender as coisas, os fatos são o que importa, os números, nada mais. A superficialidade passou a ser uma nova força, mais uma garantia, na verdade, e o caráter, uma questão pessoal, não mais inter pessoal! Serão felizes enquanto a estabilidade durar, não há Amor que resista a uma boa miséria, não é mesmo?! O sentimento maior, tornou-se o menor dos sentimentos, desprezado quase ao extremo, é imitado por outras formas menos nobres de contato humano e perfeitamente ajustável aos novos modos de se dizer “eu te amo”. O Amor foi banido a poucos que ainda resistem. O “eu te amo” agora é pejorativo e enfadonho, neste tempo que a solidão virou mais uma opção, o Amor é um luxo que muitos dispensam.
Pessoas que não acreditam no Amor, são menos careta, são mais descoladas, têm mais parceiros provisórios e por isso mesmo muito mais experiências, são livres, independentes, ao que parece têm até menos problemas e se cansam muito menos. Mas se cansam, da individualidade de cada um, é fácil para elas acharem alguém que possa corresponder a sua carência momentânea, a seus delírios casuais e anseios paranóicos, e fazer-lhes companhia por algumas horas, no máximo dois ou três meses, até se sentirem revitalizados; é quando a relação, prematuramente, começa a fraquejar e o final: “já estamos combinados”... Poderão de novo seguir em frente com suas vidas turbinadas de oxigênio, expansão e solidão, quando assim lhes for aprazível. Nada demais, vida que segue! Sem laços, sem ilusões ou aporrinhações futuras nem presentes, sem ter que dar satisfações a ninguém, enfim, sem o infortúnio do Amor.
Pessoas que não acreditam no Amor, realmente são mais sadias, mais vistosas, vigorosas, alegres, livres, divertidas, incapazes de amar.

TRANSEUNTES

Nem Queiroz


A mulher de verde passa descontraída, a de azul despercebida, guardas municipais conversam distraídos, enquanto um pivete passa por trás, um bebê me olha fixo enquanto passa por mim, no carrinho que a mãe empurra, enquanto conversa trivialidades com a amiga. A bicicleta quase atropela os transeuntes, enquanto a de entrega, estaciona do outro lado da calçada; namorados apressados entram no coletivo, o motorista se impacienta, um senhor cara de solidão, a passos de tartaruga, atravessa a rua, atrapalhando o trânsito, a velhinha me cumprimenta com os lábios, seu olhar é de outro, meninos juvenis vão na direção da praia, suas vestes denunciam; o trânsito de repente se enrola, pombos sobrevoam as copas das árvores, eles fazem das marquises seu pombal; um homem bem vestido e de óculos, pára, pensa e depois segue, prostitutas param no sinal, prostitutas não param! A menina da loja lê as notícias na banca de jornal,
está na hora do almoço, o chefe sai de mansinho e entra sozinho no restaurante granfino para almoçar, o barulho do trânsito é infernal, trabalhadores da obra, imundos de cinza, fumam cigarros baratos, termina a hora do almoço, o segurança me olha de soslaio, alguém vende bilhete de loteria, ninguém lhe dá atenção
de repente uma cadela velha, com ares de senhora, desfila entre os humanos, uma jovem de seios saltitantes desvia a atenção dos ambulantes, dois homosexuais vestidos iguais riem dos iguais, a executiva fala ao telefone celular, não lembra mais da beleza que tem, um casal de namorados passam serenos com um sorvete para dois, a mendiga anda curvada, uma senhora chique dá altas risadas e apesar de tanta jóia dependura e bem perfumada, quase não é notada, uma gorda da mesma forma bem vestida e elegante solta ares ofegantes, parece apaixonada. A criançada chega do colégio, a avó grita com o neto, o homem barrigudo aponta não sei para onde, o caminhão de lixo faz mais barulho que os outros automóveis, mas não mais que a ambulância que está presa no trânsito.
Todo os automóveis poluem o ar. Um senhor passa cantarolando, o outro discute com a mulher e com a filha, enquanto no ponto do ônibus forma-se uma fila. Um homem jovem pára para medir a pressão, o médico ganha alguns trocados com isso, a praça está cheia de mendigos, a polícia ainda não passou, o gari varre a rua, solitário, uma mulher muito bonita passa pelo outro lado, as buzinam se agitam, um grupo de velhinhos se precipitam no sinal, outro grupo, de turistas os fotografam e dão com a mão, enquanto os carros aguardam e o guarda sorri. De repente um palavrão corta o ar, ninguém se assusta. A louca vai embora e à rua se mistura. A vida prossegue...

O CALVÁRIO DOS MEUS MAIS PROFUNDOS EUS

O CALVÁRIO DOS MEUS MAIS PROFUNDOS EUS


Meus queridos livros
Dormiam comigo mas não eram vivos!
Shakespeare, Kafka, Umberto, Machado, Oscar Wilde...
Que antes me velavam o sono
Não me davam sinal de sua morte
Talvez por isso, noites de pesadelos, de suor à fio
Talvez por isso essa minha repentina falta de inspiração
E vocês me olhando, pedindo ajuda
E eu sempre adiando a limpeza, o pó, asfixia
Trec, trec, trec... e eu não entendia
Oh, meus queridos livros que em vida tanto me emocionaram
Que tanta alegria me proporcionaram
Alegria que o homem não entende
Que a namorada não entende
E que o pai ignora
Mil perdões!
Drummond se salvou, sua poesia é forte!
Bandeira, Castro Alves e Pessoa, todos juntos
Devem ter lutado bravamente contra a praga
VIVA A POESIA !!!
Mas Cristina se foi, junto com tantos outros ouros
Trec, trec, trec...
O que isso quer dizer?!
Trec, trec, trec...
O quarto estava sujo, eu sempre cansado, sempre virava para o lado
E desfalecia
Talvez por isso mesmo
Trec, trec, trec...
Minha alma sentia a invasão
E sempre desfalecia, me tirava as forças
E logo me fazia dormir
Não conseguia mais lê ali
Nem mesmo vê tv
E no silêncio da noite, meus livros de arte...
Trec, trec, trec...
Eram eles agonizando e eu sem saber
Então nesta manhã fatídica do dia primeiro
Desse mês dez-zero/2003
Uma Quarta – Um belo dia para despedidas
vi-me diante dos cadáveres
Já todos bem carcomidos pelos vermes desrespeitosos
Que não mereciam existir
Saím já daí, bradei !
Respeitem esses nobres senhores
Saíam, saíam, saíam todos!
Mas eram milhares e pareciam todos surdos
Foi então que atinei: Trec, trec, trec...Eram eles!
Mas já era tarde
Centenas de cupins nas entranhas da Rosa de Umberto
Cem Anos de Solidão para eles!
Dezenas noutros mais finos, Kafka e a sua metamorfose
Karl Marx, o manifesto, Saramago, Rilke, tudo findo.
O uivo de Ginsberg, eu não ouvi !
Assim como os sofrimentos do jovem Werther de Goethe
Cazuza, Caetano, Pablo,Vinícius, todos correndo riscos e eu não sabia!
Nietzsche e Rousseou, firmes se entreolhavam
Mesmo feridos, sobrevivem
Trabalhei à finco contra aquela praga inutilmente
Recolhi os restos mortais daqueles gloriosos imortais
A dor era quase insuportável
Nenhuma lágrima. Só dor e fel
Colocava o que podia numa caixa de papelão
Juntos para sempre até o fim
Os livros e os danados dos cupins
Adeus!
Ainda tentava salvar algum ou outro
Mas em vão
Era como limpasse, embalsamasse os corpos
E vupt, caixão! Quero dizer, caixote, caixa, sei lá
Restos literários, 10 da manhã
Já tinha ouvido falar sobre isso
Mas nunca pensei que fosse acontecer comigo
O telefone toca, é um amigo
Aflito, comuniquei o acontecido
Ele disse que ligaria outra hora porque agora eu tinha muito o que fazer
Numa espécie de pêsames literário ensurdecedor
Depois de tudo limpo, restos encaixotados, vermes idem
Lá fui eu no meu calvário
Com a caixa no ombro como quem carregasse mesmo um caixão
Enterrar os meus mais profundos eus
Caminhava triste, revoltado, cabisbaixo pela rua-via-crusis até o lixo
As pessoas que nada sabiam me olhavam surpreendentemente depremidas
Será que as pessoas são mesmo assim
Na vitrola de minha mente, Caetano surpreendente, como sempre
Me consolava com uma canção dos Beatles
“ I look at all the lonely people... “
Mas voltando ao calvário: do velório à marcha fúnebre, cheguei ao lixo
E o lixo na esquina estava também surpreendentemente organizado
Tirei os sacos pretos de cima e aconcheguei com carinho e tristeza a caixa no leito
Voltei com os sacos pretos por cima
O sepultamento estava feito
Ainda pelos cantos
Podia ver os restos de William
Um pedaço de Machado manchado
E Adélia...
Ah, minha queridíssima e doce Adélia
Mil perdões e Adeus...
A lágrima com certeza virá depois...

AOS TRINTA E CINCO

AOS TRINTA E CINCO


Só fui me aquietar nessa vida
Aos trinta e cinco
Quis ainda poder o que pode um homem
Aos vinte, vinte e cinco
Mas não era mais hora
Agora, a alma não insistia mais
O corpo não padecia
Mas como ainda pedia
O que eu também queria
E não podia mais...
O amor sempre me resguardou
Mesmo me trazendo dores ao invés de flores
Foi ele quem sempre me ensinou
E eu atento, não perdia um só momento
E atuava feito um ator
Sexo sempre foi um detalhe para mim
Mas que detalhe saboroso!
Porém, era o amor quem mais e sempre
me interessava
Se houvesse sexo sem amor
Só se valesse muito à pena!
Agora, se houvesse o amor, eu não me preocupava
O sexo era certo!
E nunca havia erros e precipitações
Pois quem ama tem nos erros
Adoráveis pitadas de recriação de uma mesma realidade
E nunca é tarde
E sempre há tempo para ser jovem
E jamais envelhecer

À propósito
Aos trinta e cinco
É claro que eu podia muito mais ainda!
Tanto eu quanto a minha alma e o meu corpo
É que o amor agora me era pouco!

NADA ESCAPA DOS SONHOS QUE TIVE

NADA ESCAPA DOS SONHOS QUE TIVE



Do pecado da carne da música do corpo nu
Do país da miséria dos livros da África do sul
De todos os países subdesenvolvidos dos subestimados
Sobre os envolvidos na chacina do complexo do Carandirú
Dos ridículos que comandam
A todos que são feitos da mesma massa orgânica
Do medo da vida da luz
Do crime da inocência da ferida jorrando pus
De tudo que nos deprime do pouco que nos alegra
Das coisas que nos reprimem de tudo que nos cerca
Do matrimônio do patrimônio da política do planeta terra
Que no planeta Marte exista algo que nos surpreenda
A vida que é bonita é o estandarte que nos embeleza
O homem que nos engana
É o mesmo que chora de noite na cama
O mesmo que faz a guerra dinheiro o caminho a solidão
O sermão da montanha a bíblia o alcorão
A vida que agoniza
Com seus dedos mortos nos apontam
Para onde ninguém enxerga
O início de um novo mundo
O final de uma velha guerra
Uma morte de dias amontoados que ninguém deseja
Uma vitória que ninguém alcança
Quando não há mais esperança...
Quando não há mais esperança!

Nenhuma vida é fraca
Nenhuma farsa é nobre
Nenhum homem que mente
É melhor que o ladrão que foge

Nada escapa dos sonhos que tive esta noite...