quarta-feira, 23 de abril de 2008

O CALVÁRIO DOS MEUS MAIS PROFUNDOS EUS

O CALVÁRIO DOS MEUS MAIS PROFUNDOS EUS


Meus queridos livros
Dormiam comigo mas não eram vivos!
Shakespeare, Kafka, Umberto, Machado, Oscar Wilde...
Que antes me velavam o sono
Não me davam sinal de sua morte
Talvez por isso, noites de pesadelos, de suor à fio
Talvez por isso essa minha repentina falta de inspiração
E vocês me olhando, pedindo ajuda
E eu sempre adiando a limpeza, o pó, asfixia
Trec, trec, trec... e eu não entendia
Oh, meus queridos livros que em vida tanto me emocionaram
Que tanta alegria me proporcionaram
Alegria que o homem não entende
Que a namorada não entende
E que o pai ignora
Mil perdões!
Drummond se salvou, sua poesia é forte!
Bandeira, Castro Alves e Pessoa, todos juntos
Devem ter lutado bravamente contra a praga
VIVA A POESIA !!!
Mas Cristina se foi, junto com tantos outros ouros
Trec, trec, trec...
O que isso quer dizer?!
Trec, trec, trec...
O quarto estava sujo, eu sempre cansado, sempre virava para o lado
E desfalecia
Talvez por isso mesmo
Trec, trec, trec...
Minha alma sentia a invasão
E sempre desfalecia, me tirava as forças
E logo me fazia dormir
Não conseguia mais lê ali
Nem mesmo vê tv
E no silêncio da noite, meus livros de arte...
Trec, trec, trec...
Eram eles agonizando e eu sem saber
Então nesta manhã fatídica do dia primeiro
Desse mês dez-zero/2003
Uma Quarta – Um belo dia para despedidas
vi-me diante dos cadáveres
Já todos bem carcomidos pelos vermes desrespeitosos
Que não mereciam existir
Saím já daí, bradei !
Respeitem esses nobres senhores
Saíam, saíam, saíam todos!
Mas eram milhares e pareciam todos surdos
Foi então que atinei: Trec, trec, trec...Eram eles!
Mas já era tarde
Centenas de cupins nas entranhas da Rosa de Umberto
Cem Anos de Solidão para eles!
Dezenas noutros mais finos, Kafka e a sua metamorfose
Karl Marx, o manifesto, Saramago, Rilke, tudo findo.
O uivo de Ginsberg, eu não ouvi !
Assim como os sofrimentos do jovem Werther de Goethe
Cazuza, Caetano, Pablo,Vinícius, todos correndo riscos e eu não sabia!
Nietzsche e Rousseou, firmes se entreolhavam
Mesmo feridos, sobrevivem
Trabalhei à finco contra aquela praga inutilmente
Recolhi os restos mortais daqueles gloriosos imortais
A dor era quase insuportável
Nenhuma lágrima. Só dor e fel
Colocava o que podia numa caixa de papelão
Juntos para sempre até o fim
Os livros e os danados dos cupins
Adeus!
Ainda tentava salvar algum ou outro
Mas em vão
Era como limpasse, embalsamasse os corpos
E vupt, caixão! Quero dizer, caixote, caixa, sei lá
Restos literários, 10 da manhã
Já tinha ouvido falar sobre isso
Mas nunca pensei que fosse acontecer comigo
O telefone toca, é um amigo
Aflito, comuniquei o acontecido
Ele disse que ligaria outra hora porque agora eu tinha muito o que fazer
Numa espécie de pêsames literário ensurdecedor
Depois de tudo limpo, restos encaixotados, vermes idem
Lá fui eu no meu calvário
Com a caixa no ombro como quem carregasse mesmo um caixão
Enterrar os meus mais profundos eus
Caminhava triste, revoltado, cabisbaixo pela rua-via-crusis até o lixo
As pessoas que nada sabiam me olhavam surpreendentemente depremidas
Será que as pessoas são mesmo assim
Na vitrola de minha mente, Caetano surpreendente, como sempre
Me consolava com uma canção dos Beatles
“ I look at all the lonely people... “
Mas voltando ao calvário: do velório à marcha fúnebre, cheguei ao lixo
E o lixo na esquina estava também surpreendentemente organizado
Tirei os sacos pretos de cima e aconcheguei com carinho e tristeza a caixa no leito
Voltei com os sacos pretos por cima
O sepultamento estava feito
Ainda pelos cantos
Podia ver os restos de William
Um pedaço de Machado manchado
E Adélia...
Ah, minha queridíssima e doce Adélia
Mil perdões e Adeus...
A lágrima com certeza virá depois...

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