quarta-feira, 22 de abril de 2009

FRAGMENTOS




(...) Passava horas no Studio sozinho, dava cinqüenta paus para o dono e ninguém me aporrinhava ou me encontrava por algumas horas sagradas para mim, a solidão do som. Levava a minha guitarra Rickenbaker, uma garrafa de uísque, alguns maços de cigarros e outros cigarrinhos infalíveis de maconha, ligava a bichinha no máximo e ficava solando e cantando dissonante durante todo o tempo só, trechos infindáveis de um mesmo solo ou riff, de canções que conhecia, aleatoriamente. “I can get no, satisfaction...” repetia dez, vinte vezes seguidas, às vezes quinze minutos de uma mesma música, de um mesmo trecho, bem alto, estridente, doses de uísque quente, suando feito um porco, exorcizava todos os meus males e meus demônios e mais os medos e alucinações que a realidade faz arder ao sol , me sentia um Kurt Cobain, entre gritos e levadas viscerais, sem ninguém para constranger, assistir, restringir ou ser criticado, sem ninguém para ouvir ou interferir, sendo eu pelas avessas, pela tripas, pelo estômago, o meu âmago, surto, solto, violento, sem medo e só, sem ninguém para me interromper, eu era a minha própria angústia sem medo e mais bonita, vomitada em formas de notas musicais dissonantes e versos estúpidos initelegíveis e nervosos do rock meu, do meu punk e de minhas autorias inventadas ali, na hora, no estalo, exorcizados pelo instinto. Certa vez me acompanhou a cocaína, noutras a loucura da raiva. Quando abriram o Studio estava caído sobre o tapete rubro e sujo, caído sobre o vômito, feio como uma estrela do rock, feito um mito, um mijo, um Zé ninguém, babaca e sonhador, “imortal”. Nunca mais me deixaram entrar, não sozinho, todo modo, nunca mais voltei. Pulava, saltava, me largava no chão, antes da overdose, ficava em silêncio, urgia, orgia verbal e solista, me tremia como um doente, apagava as luzes até recuperar a voz e o fôlego. Lia poesia em voz alta e tremida, com raiva, com ódio, sem ninguém para me escutar, me encontrava com deus, saía outro, eu e minha guitarra estridente e desafinada, para nada,, fora de uso, fora de foco, eu e minha guitarra veloz, feroz, furiosa, confidente, sem saber falar, sem saber tocar, urgindo para o mundo dentro de mim, e mais as garrafas, os maços vazios e a cabeça vazia, a vida renovada na guinada forte e honesta do instrumento, a voz, as cordas, o corpo...até ficar surdo, até quebrar, até ficar imune, transcender, beber no gargalo a vida amarga e crua. Um dia estava com um revólver ( não, não era o disco dos Beatles, era um revólver de verdade), um 38, um três oitão, velho e destemido, que um amigo esqueceu comigo certo dia e demorou para pegar de volta, levei para o Studio, só para compor o clima depressivo que eu gostava de criar, outras vezes papelotes de cocaína que eu jogava avanço para mim mesmo, empoeirando todo o ambiente, aí foi o fim, quase morri. Não me mostrava para ninguém, apenas tinha alma saturada de poesia, soul e rock´n´roll, como diz uma linda canção de Caetano, “O homem velho”. É que às vezes “falta velocidade aos nossos olhos de prata, falta velocidade aos nossos desejos ociosos... De repente você encontra linhas amargas naquelas doces cartas...”


(Entre aspas: frases de duas canções da banda Habitantes)
* trecho do novo livro de Nem Queiroz " Eu não sei o seu nome! - à pureza pefeita e absoluta de ninguém"